Ensaio sobre Literatura e sexualidade - por Letícia Goes

As criações ficcionais e poéticas exercem influências no subconsciente e inconsciente, sendo impossível avaliar as consequências do encontro entre obra literária e personalidade do leitor. Mas é fato que se pode afirmar a atuação daquela sobre esta, de modo que define ou redefine os traços psicológicos de seu público. E justamente por esta atuação indiscriminada é que desde tempos remotos até os nossos dias há o conflito entre o ensino da literatura (repleta de conotações sexuais) versus os moralismos (reflexos da cultura cristã). Consideremos, no entanto, que seja plausível de comprovação a impossibilidade de ser tido por paradoxal o ensino da literatura nas escolas inseridas na sociedade cristã, por ser esta repressora do sexo. Pode-se afirmar, contudo, que seja paradoxal o ensino da literatura nas escolas inseridas na sociedade falso-moralista que teve sua consciência manipulada quanto ao caráter do sexo. Manipulada, uma vez que os escritos que regem os dogmas do cristianismo e a conduta daqueles participantes de religiões de inclinação cristã, não proíbem ou reprimem a prática sexual, ao contrário, motivam as práticas naturais do sexo não só para a perpetuação da espécie humana, mas também para o desfrute do prazer.

“Seja bendito o teu manancial; e regozija-te na mulher da tua mocidade. Como corça amorosa, e graciosa cabra montesa, saciem-te os seus seios em todo o tempo; e pelo seu amor sê encantado perpetuamente.” (PROVÉRBIOS 5: 18-19)

O grande conflito na sociedade cristã, (reflexo dos ensinamentos da Igreja), é a suposta controvérsia entre santidade divina e a carnalidade humana. O mito em torno destes contrastes é tão reluzente que formou a consciência de gerações quanto à pecaminosidade do sexo. Para compreendermos um pouco melhor o assunto e discernirmos sua influência na educação literária de nossos alunos, é preciso abordar, ainda que superficialmente, suas raízes: A cultura hebraica que norteia a tradição cristã.
Um forte elemento dessa cultura é a tradição patriarcal. Era chamado patriarca o chefe do povo (antes da instituição dos juízes) e também o chefe da casa, o pai. Ele é quem determinava, organizava, sustentava a casa e oferecia os filhos em matrimônio. O vocábulo hebraico que frequentemente é traduzido por ‘família’ é ‘mishpãhâ’, cujo conceito é mais amplo e tem o sentido de ‘clã’, um grupo maior e não só os ‘da casa’. Um termo mais próximo do equivalente ao termo português ‘família’ se encontra na frase ‘bêth abh’, ‘casa do pai’. O clã não representava apenas o ajuntamento parental, mas favorecia a construção de relações sociais, estabelecendo alianças econômicas, religiosas e matrimoniais entre os hebreus. Era comum firmar pactos tanto com Deus ‘Yaweh’, quanto com seus iguais. A grande referência patriarcal tanto do mundo muçulmano, hoje, quanto do mundo judaico, é a figura de Abraão (‘abhrãhãm’), explicado como ‘pai de multidões’. De Abraão suscitaram Ismael (ancestral dos ismaelitas) e Isaque, chamado Israel (ancestral dos israelitas), dois povos inimigos até os dias atuais. Neto de Abraão, filho de Isaque, Jacó, ao lado da esposa Raquel, compõem uma das mais contundentes histórias hebraicas de amor físico e espiritual. Ambos pertenciam ao mesmo mishpãhâ. Jacó se dispôs a pagar sete anos de trabalho a seu sogro, Labão, como forma de acordo pré-nupcial. Os valores pagos, ou serviços prestados pelo noivo à família da noiva não caracterizavam uma troca de “mercadorias”,mas, representava a compensação por retirar do convívio da bêth abh um ente precioso para a família. Para estabelecer uma relação marital era preciso, por parte do noivo, reconhecer e valorizar a noiva perante sua casa. Jacó fora enganado por Labão, que em lugar de Raquel, lhe entregou sua filha mais velha, Lia (a poligamia era comum). Por amor a Raquel se sujeitou a trabalhar outros sete anos. O esforço para estar com a mulher amada se dava pelo fato de que a pureza da noiva era preservada, e o noivo só a conheceria após a cerimônia de casamento. O clã protegia a integridade da noiva. Jacó se casou com Raquel e então coabitou com ela, e a amou mesmo sendo ela estéril.
A tradição do sexo pós-matrimônio foi herdada pelo cristianismo, e com ela vieram os mitos de que o sexo para o cristão não é para o prazer mútuo, mas, exclusivamente, para a perpetuação da espécie. Confundiu-se valorização do ato sexual, a não banalização, com recriminação daquilo que pode vir a ser imoral. Gerou-se o tabu ao redor da sexualidade, e os equivocados ensinamentos da Igreja “demonizaram” a busca pelo prazer. No entanto, a questão é tão flácida que logo a expurgamos, e com argumentos presentes na própria literatura hebraica. O livro poético ‘Cânticos dos Cânticos’, ‘shïr hashshïrïm’, presente no cânone bíblico, de autoria do rei Salomão, é composto por explícitas descrições eróticas do encontro entre Salomão e a sulamita.

“Quão formosos são os teus pés nos sapatos, ó filha do príncipe! Os contornos de tuas coxas são como jóias, trabalhadas por mãos de artista. O teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre como montão de trigo, cercado de lírios. Os teus dois seios como dois filhos gêmeos de gazela. O teu pescoço como a torre de marfim; os teus olhos como as piscinas de Hesbom, junto à porta de Bate-Rabim; o teu nariz como torre do Líbano, que olha para Damasco. A tua cabeça sobre ti é como o monte Carmelo, e os cabelos da tua cabeça como a púrpura; o rei está preso nas galerias. Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias! A tua estatura é semelhante à palmeira; e os teus seios são semelhantes aos cachos de uvas. Dizia eu: Subirei à palmeira, pegarei em seus ramos; e então os teus seios serão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração como o das maçãs.” (CANTICOS 7:1-8)

“Se o livro de Cantares de Salomão não é uma alegoria ou um tipo que transmite uma mensagem espiritual, que lugar tem o mesmo no cânon? Serve de lição objetiva, um prolongado mãshãl, ilustrando as ricas maravilhas do amor humano. Como o ensino bíblico referente ao amor físico tem sido emancipado do ascetismo subcristão, a beleza e a pureza do amor marital podem ser mais plenamente apreciadas. O livro, embora vasado em linguagem por demais ousada para o gosto ocidental, provê um equilíbrio são entre os extremos do excesso ou perversão sexual e as negações ascéticas, apresentando a justeza essencial do amor físico. E. J. Young leva esse propósito um passo mais adiante: ‘Não somente fala sobre a pureza do amor humano, mas sua própria inclusão no cânon relembra-nos um amor que é mais puro do que o nosso’ (Introduction to the Old Testament, 1949, pág. 327)”. (DOUGLAS, v. I, pág. 263)



Tomando por base tal ponto de vista, é razoável concluir que mediante a impossibilidade de correção da consciência preconceituosa de nossa cultura, está ao nosso alcance propor que a formação leitora dos alunos da Educação Básica não sofra a subtração de abordagem de obras com teor sexual, apenas observando o nível da maturidade cognitiva e se esta é suficiente para que o aluno assimile e sofra a ação indiscriminada de dado conteúdo, e que o professor esteja atento às fases de desenvolvimento, de modo a não “queimar” as etapas da educação apresentando obras de caráter inoportuno àquele estágio.

2 comentários:

  1. Nem li nada, só passei pra dizer que estou com saudade ... hahahah bjs

    ps. posts muito grandes me dão preguiça!

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  2. Adoro as suas palavras, as suas frases tão bem escritas que transmitem, de forma quase perfeita o que nossos olhos buscam ler, pra entender, pra conhecer, pra saciar.
    Gostei muito desse texto Leticia.

    Beijos e fica na Paz .

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